Miss Mary: a estética feminista e as políticas do amor de Maria Luísa Bemberg
- Juliana Gusman
- 17 de mar.
- 15 min de leitura
Há quase um ano, fui convidada pela gerência do Cine Humberto Mauro para comentar uma sessão de Noites de Cabíria (1957), de Federico Fellini. É curioso como hoje volto a esse espaço para falar de uma realizadora que se via como o avesso do diretor italiano, que teria inventado o seu passado “para ter a felicidade de recriá-lo” no cinema. Em entrevista, Maria Luísa Bemberg opôs-se, explicitamente, a essa nostalgia:
Eu não sinto tal felicidade para nada. O passado me agonia, me traz más recordações. Coloquei-as em uma sombra e considero que não ofuscam muito o meu presente. Faço alguma referência a tais lembranças em Miss Mary, com essa menina, com essa casa muito grande onde prevaleciam as boas maneiras e pouco afeto, muito protocolo e extrema indiferença.
Hoje, falaremos, justamente, deste que é seu filme mais autobiográfico e que materializa a insubmissão de seus fantasmas.
De “senhora de alguém” a “senhora de ninguém”
Nascida em 14 de abril de 1922, no seio de uma família tradicional e abastada de Buenos Aires – que aportara na Argentina no final do século XIX –, Maria Luísa Bemberg seguiu, não sem certo desconforto, o destino traçado às boas meninas de sua classe. Apesar da sua obstinada curiosidade, passou sua infância entre a região do Rio da Prata e Paris sem frequentar a escola e receber uma educação formal – para além dos ensinos das 22 mademoiselles ou señoritas que passaram pelas casas dos Bemberg, a depender da geografia. Casou-se, aos 22 anos e apaixonada, com o arquiteto Carlos Miguens, com quem teve quatro filhos. Anos depois, diria que foi preciso tê-los para “saber que não bastavam”.
Em 1949, aos 27, aproximou-se da cena cultural, vinculando-se ao histórico teatro Smart – administrando-o junto com o marido –, seguindo, logo depois, para o teatro Astral como produtora de peças. Lá, teve seu primeiro trabalho criativo como figurinista em La vista de la anciana dama, de Friedrich Dürrenmatt. Até então, nunca havia ocorrido à Maria Luísa que teria algo mais do que tempo, dinheiro, energia e intuição para estar nesses espaços: “Nunca imaginei que teria talento”.
No começo dos anos 1960, divorcia-se – na Europa, pois a lei do divórcio na Argentina foi promulgada apenas em 1987 – funda, com Catalina Woolf, o Teatro del Globo, onde adquiriu uma importante experiência com direção de atores, e começa a sua coleção de artes; no início 1970, torna-se avó e inicia suas primeiras incursões no feminismo e no cinema.
Não se nasce cineasta. Torna-se.
Como no Brasil, a Argentina atravessa, neste contexto, um cenário político efervescente, para o bem e para o mal. Três dos seus seis golpes de estado que aconteceram no século XX eclodiram neste período – em 1962, 1966 e 1976. Apesar da repressão e da censura, o cinema politicamente engajado com a crítica da realidade social – tal qual o movimento do Cinema Novo por aqui – conseguiu se firmar a partir do trabalho de figuras como Fernando Solanas, Octavio Gentino – autores do famoso manifesto Hacia un Tercer Cine (Rumo a um Terceiro Cinema) – Fernando Birri ou Gerardo Vallejo. Se as mulheres, até então, ocupavam postos invisibilizados neste campo – como maquiadoras ou figurinistas, majoritariamente –, os feminismos que também lograram insurgir da América Latina inflamaram suas iniciativas cinematográficas próprias.
Maria Luísa, de fato, chegou ao cinema pela via feminista. Encantou-se, primeiro, com o voo intelectual de Simone de Beauvoir, que lançara O Segundo Sexo em 1949. Um namorado, à época, chegou a ameaçar terminar a relação caso Maria Luísa não se separasse das ideias da filósofa francesa. Quem encerrou o namoro foi ela, que se imiscuiu, “com a avidez das autodidatas”, nas obras de Beauvoir, Betty Friedan, Kate Millet e Margaret Mead. Em 1969, participou da fundação da União Feminista da Argentina, a UFA, um dos primeiros coletivos de mulheres do país. Mas a virada de chave para o cinema veio com uma frase do escritor André Malraux: “temos que viver as nossas ideias”. Maria Luísa, então, se perguntou:
E o que eu estava fazendo para viver minhas ideias? Eu tinha tempo, a lucidez necessária, as possibilidades econômicas de delegar a outras pessoas certas responsabilidades. Foi como um choque, e senti uma certa vergonha de mim mesma. Disse: “como posso expressar essa preocupação que sinto pelas outras mulheres, especialmente, por aquelas que não tiveram os privilégios que eu tive?”. Então, decidi tratar de escrever.
Em seu gesto inaugural, Bemberg inscreveu uma peça de teatro num concurso do jornal La Nación, chamada La margarita es una flor. A protagonista, Margarida, não se parecia em nada com uma, porém. Era uma mulher em uma profunda crise existencial frente ao suicídio de uma amiga. O concurso não vingou, e Maria Luísa contou essa peripécia, fortuitamente, a um amigo de seu genro durante uma festa em sua casa. Tal amigo, por sua vez, conhecia um emergente diretor de cinema, Raúl De La Torre, a quem entregou uma cópia da peça. Poucos dias depois, De La Torre propôs que Maria Luísa a transformasse em um roteiro para cinema. Nasce, do imponderável, Crónica de una señora (1971).
Escrever roteiros não era uma atividade tão incompatível com a feminilidade almejada naqueles tempos. “Escrever um guião era algo aceito porque que a mulher o faria em sua casa tomando uma xícara de chá. Mas sair para dar ordens no mundo técnico era outra coisa”. Um ano depois, Maria Luísa se rebela contra imobilidades e dirige, já cinquentenária, o seu primeiro curta-metragem, El mundo de la mujer (1972), sobre uma exposição, A mulher e seu mundo, realizada em 1972, que dispunha e louvava os aparatos necessários para a conformação feminina a certos padrões.
Este filme, assim como o seu segundo curta, Juguetes (1978) – sobre as diferenças de expectativas e sonhos entre meninos e meninas – se inscreve política e esteticamente nas tendências instituídas pelo que se convencionou chamar de “um cinema de mulheres”– designação que começou a ser aventada pela crítica feminista de cinema, também sistematizada nos anos 1970, para nomear uma produção confluente que despontara de Norte a Sul Global (Veiga, 2019). Documentários militantes comprometidos com o desmantelamento da normatividade de gênero, tanto El mundo de la mujer, quanto Juguetes, expõem e denunciam os processos e artifícios – materiais e subjetivos – edificadores da domesticidade. Com uma câmera ágil e uma ironia fina, Maria Luísa começou a se expressar, autonomamente, pelas imagens.
A fome por autonomia se intensificou quando percebeu que seus roteiros – entre a realização dos dois curtas, havia escrito Triángulo de Cuatro (1975), de Fernando Ayala, que lhe rendeu seu primeiro prêmio Argentores, da Sociedade Argentina de Escritores – não se traduziram, satisfatoriamente, para a tela. Em uma entrevista ao La Nación sobre Crónica de una señora, disse:
Meu propósito foi denunciar um tipo de educação, a que eu recebi, mas De La Torre modificou o tema, inclinando-o à denúncia social. Apesar das grandes divergências que tivemos, sou muito agradecida a ele, porque foi o primeiro que me deu confiança em mim mesma.
Munida de indignação e alguma segurança, Maria Luísa deu-se conta da sensibilidade que a direção era capaz de imprimir ao filme: “Não me houve outra alternativa senão começar a filmar”.
Por uma estética feminista, ou como colocar a espectadora em movimento
Não que este fervor inarredável tenha atenuado dificuldades. Antes de lançar-se à direção, Maria Luísa estudou direção de atores com figuras como Beatriz Matar, importante atriz, dramaturga, professora e diretora de teatro argentina, e Lee Strasberg, preparador de atores como Marlon Brando, Paul Newman e Robert de Niro, com quem passou seis meses em Nova Iorque. Ainda, minuciou o livro A arte da montagem, de Raúl Sánchez, além de iniciar um processo terapêutico com Miguel Bayo, numa tentativa de domar seus nervos paralisantes diante do desafio que propôs a si mesma.
Maria Luísa também delimitou, de antemão, sua perspectiva ético-política. Centralizaria, em suas histórias, personagens femininas: “É um compromisso moral. 93% dos cineastas são homens. Creio que seria uma imoralidade que, fazendo cinema e sendo mulher, eu priorizasse os personagens masculinos”. Admirando o trabalho de figuras como Margarethe Von Trotta, Márta Mészáros, Helen Mey e Vera Chytilová, e posicionando-se contra a vulgaridade comum a um cinema viril, Maria Luísa imaginava protagonistas “alentadoras, criativas, fortes e fora do comum”. Isso, contudo, não significou recair na armadilha dos “estereótipos da positividade”, numa espécie de “hiper-humanização enfática” reparadora que ignora as nuances e contradições da vida real (Araújo, 2023). As mulheres de Maria Luísa são conflituosas, atormentadas, passíveis de tensionamentos: a diretora não joga com nossa adesão plena, sem desconfortos ou atritos.
Ainda assim, Maria Luísa nos convoca a acolhê-las, apesar de tudo. “Creio que, em geral, sou bondosa com meus personagens pois os amo. São como meus filhos”. Ela se via como uma contadora de histórias “que busca colocar em movimento atitudes potenciais da espectadora, que ela mesma desconhece”. Com isso, podemos dizer que, ao menos nos termos da teórica Teresa de Lauretis (1984), Maria Luísa vislumbrava uma “estética feminista”: seus filmes se dirigem a nós – não unívoca ou redutoramente, mas com ambiguidade radical – como mulheres, o que significa dizer que, desde seus elementos pré-estéticos, suas obras imaginam – e por isso mesmo produzem – identificações e sujeitos-mulheres antipatriarcais. Para De Lauretis, a estética feminista surge não apenas de um cinema de mulheres, mas de um cinema para mulheres, endereçado aos sujeitos e ao mundo que ambicionamos (des)construir. A partir do encontro de Maria Luísa com aquela a que se referiria como sua governanta de número 23 – a produtora Lita Stantic, hoje uma lenda viva do cinema argentino – a realizadora, aos 58 anos, pôs-se a filmar seu primeiro longa-metragem de ficção.
Se o “cinema de mulheres” dos anos 1970 e 1980 foi, geralmente, dividido em duas grandes tendências – por um lado, representado por documentários de verve ativista, intervencionista, e conscientizadora e, por outro, pela experimentação formal vanguardista, opositora ao realismo supostamente alienante de um cinema narrativo burguês e masculino –, Maria Luísa parece ter optado por uma terceira via na sua incursão ficcional. A despeito do rigor formal e de uma cadência temporal bastante específica, atenta aos ritmos da vida privada, os seus filmes optam por uma estrutura narrativa aparentemente convencional – o que talvez tenha favorecido seu maior êxito no circuito exibidor.
As duas primeiras obras de Maria Luísa centram-se nas complexidades e tiranias das relações pessoais na vida cotidiana. Momentos (1981), premiado no Festival de Cartagena, fala sobre um triângulo amoroso, mas a partir da ótica inconvencional de uma mulher. Lúcia, a protagonista, enreda-se na infidelidade e divide-se entre o amor de seu marido e de seu amante. O sucesso deste filme, financiado com recursos próprios, tornou possível a realização do segundo – mesmo que seu roteiro tenha sido retido por cinco anos pela censura do Ente Cinematográfico, um organismo dedicado a velar pelos “bons costumes” na produção cultural de uma Argentina militarizada. Señora de Nadie (1982) acompanha a jornada de libertação de uma mulher que descobre a farsa de sua vida conjugal ilibada. Ao se deparar com as traições do marido, resolve não só abandoná-lo, deixando, também, os filhos e as responsabilidades do lar – não sem antes distribuir bilhetes pela casa com instruções do trabalho invisível que cumpria como mãe e esposa, um contundente aceno da diretora à militância feminista de segunda onda. Como “senhora de ninguém”, Leonor, interpretada por Luisina Brando, ancora-se, sobretudo, nas amizades. Pablo (Julio Chávez), um homem gay, é um de seus alentos – o elemento que mais provocou a ira da censura estatal.
A obra seguinte foi um divisor de águas na filmografia de Bemberg, em vários sentidos. Camila (1984), não só projetou Maria Luísa nacional e internacionalmente – o longa concorreu ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro –, como representou um ponto de inflexão em suas abordagens temáticas. Mulheres em crises permaneceram em foco, mas a partir de Camila, estariam enredadas em contextos históricos específicos, capazes de evidenciar as coerções perpetuadas pelas instituições de poder, como a Igreja e o Estado autoritário. Diante de tais brutalidades, essas mulheres se aliançariam umas com as outras, numa tentativa nem sempre exitosa de sobreviver.
Camila reconstitui a real e curta trajetória de Camila O’Gorman (Susú Pecoraro), jovem da alta sociedade da província de Buenos Aires que se apaixonou por um padre jesuíta, Ladislao Gutiérrez (Imanol Arias), durante a vigência do governo militar de Juan Manuel de Rosas (1835-1852). O período de dura repressão culminou com a perseguição e execução pública dos amantes, em 18 de agosto de 1848, com anuência, inclusive, do pai de Camila, Adolfo O’Gorman. O filme, para além de não erigir Camila como uma garota inocentemente ludibriada e seduzida por um homem, retratando-a como uma pessoa consciente de suas escolhas, nos apresenta, ainda, à Anita Perichón, avó de Camila, que, por também afrontar moralidades, viveu durante anos exilada no Rio de Janeiro. O filme encara a rebeldia como uma herança matriarcal que, apesar de conduzir Camila à punição, a afasta, definitivamente, de uma adesão plácida à ordem vigente.
Melhor filme no 43º Festival de Veneza, Miss Mary (1986), sobre o qual irei me deter adiante, além de ser o mais autobiográfico dos trabalhos de Bemberg, é o que costura a rede mais intrincada de alianças femininas – e, por que não, feministas. A atriz britânica Julie Christie encarnaria a sumarização das governantas da infância de Maria Luísa, que se projeta na dupla de irmãs por ela cuidadas, Carolina (Sofía Viruboff) e Teresa (Barbara Bunge). A mais ferrenha crítica à sua classe de origem, Miss Mary é uma homenagem às “mães mercenárias”, tão acolhedoras quanto repressoras, com as quais Maria Luísa estabeleceu uma relação de amor e ódio. “Desde pequena percebia que tudo o que elas tinham cabia em uma mala. Deambulavam de casa em casa, afeiçoando-se de filhos que não eram delas, vivendo entre a opulência sendo, persistentemente, pobres e estrangeiras”. Assinalando diferentes marcos da ascensão autoritarista – como a chegada de José Félix Uriburu à presidência, nos anos 1930 (registrada nas imagens de arquivo da abertura do filme) – e da resistência popular – como a revolta peronista de 17 de outubro de 1945 (registrado no material arquivístico presente nos créditos finais) – Maria Luísa desbrava as fronteiras entre o pessoal e o político.
Yo, la peor de todas (1990), completa essa trinca ao reconstituir a biografia de Sor Juana Inés de la Cruz, baseando-se no livro Las trampas de la fe (1982), de Octavio Paz. Sor Juana, que viveu entre 1652 e 1695, foi uma poetisa que entrou para uma ordem eclesiástica no México colonial em uma estratégia para conseguir estudar, tornando-se um dos maiores escritores do Século de Ouro da cultura espanhola. Sua audácia não passou despercebida pelos membros do alto clero, cuja retaliação é freada pela vice-rainha, María Luisa Manrique de Lara y Gonzaga, a Marquesa de Laguna, com quem Sor Juana desenvolveria uma relação de amor – tão fraternal quanto erótica.
O último e mais premiado filme de Bemberg, De eso no se habla (1993), concluído dois anos antes de sua morte aos 73 anos em decorrência de um câncer, representa o giro da cineasta argentina a um feminismo que hoje chamamos de interseccional, voltando-se para outras condições de subalternidade. Aqui, sua protagonista, Charlotte, interpretada por Alejandra Podesta, é uma mulher com nanismo sufocada pela mãe, vivida por Luisina Brando, talvez a atriz mais recorrente na filmografia de Maria Luísa. O conflito se estabelece quando Ludovico D’Andrea, encarnado por ninguém menos que Marcello Mastroianni – o alter ego cinematográfico do “anti-Bemberg”, Federico Fellini –, decide se casar com Charlotte. Maria Luísa dedicou este filme “a todas as pessoas que tem o valor de ser diferentes para encontrar a si mesmas”.
Neste corpo fílmico, sobressai-se, além do apuro estético da mise-en-scène e da fotografia, a estrutura dramática, a tragédia e a morte – se não literal, como nos casos de Camila ou Yo, la peor de todas, a morte como ruptura, no caso de Señora de nadie e Miss Mary; suas faces sempre se apresentam como uma possibilidade de libertação. Na obra de Bemberg, as amarras, hipócritas, cerzidas pelos homens de sua própria classe são desatadas de uma forma ou de outra. E o primeiro fio estirado, que desestabiliza a urdidura do mundo patriarcal, é o desejo fora da linha. Miss Mary, além de seu pendor autoficcional, é o filme que melhor explora a indomabilidade das vontades femininas. Alinhavarei brevemente, os seus méritos em três atos.
Os desejos de Miss Mary
I – Os prazeres dos registros autobiográficos
Miss Mary reconstitui as memórias infantis de Maria Luísa Bemberg. Talvez por isso, acontecimentos de ordem pública apareçam, na obra, mais como ruídos que invadem a placidez de um cotidiano doméstico do que como episódios detalhadamente figuráveis: eles surgem em comentários corriqueiros – tal qual o anúncio do falecimento do escritor fascista Leopoldo Lugones, em 18 de fevereiro de 1938 –, ou nos gritos da juventude peronista que rasuram um silêncio preservado por janelas fechadas. Anedotas marcantes da vida privada, por outro lado, dão origem, frescor e vitalidade a algumas das cenas mais memoráveis do filme.
Uma das correspondências mais evidentes é o casamento de Terry, a caçula, ocorrido após o salto temporal proposto pelo longa. Ao sair da igreja, Miss Mary depara-se com um grupo exultante rumo à Praça de Maio, celebrando a libertação de Juan Domingo Péron encarcerado pelo governo de Edelmiro Farrel. O casamento de Maria Luísa com Carlos Miguens aconteceu, na verdade, nesse mesmo dia, 17 de outubro de 1945 – conhecido, hoje, como o Dia da Fidelidade Peronista. Contra ímpetos emancipatórios, Maria Luísa e Terry caminharam, juntas, para suas prisões.
A proximidade entre Terry e Carolina, por sua vez, também é modelada a partir da cumplicidade que existia entre Maria Luísa e sua irmã mais nova, Magdalena. Como não foram à escola e não tinham amigas, as filhas mais novas de Otto Eduardo e Sofía Bengolea tornaram-se confidentes. Ali, como no filme, germinou-se uma aliança pré-feminista. Já a celebração inusitada de Carolina após a sua menarca foi inspirada na reação igualmente festiva de Josefina, irmã mais velha de Maria Luísa. Como Miss Mary, a governanta das Bemberg reprimiu a excitação: “Ali, descobri que o pudor feminino é calar e ocultar o que acontece conosco”, recordaria a diretora. Na cena seguinte, Carolina é duramente repreendida por brincar, zombeteiramente, com um boneco com pênis. Miss Mary aplica-lhe varetadas na mão, punição que considerava, até então, excessivamente violenta – o que demonstra sua insatisfação diante de tal impertinência. A governanta se indignará, da mesma maneira, quando Carolina e Terry recriam uma cena de Private Number (Roy Del Ruth, 1936) e se beijam como Robert Taylor e Loretta Young.
Neste exercício de autoficcionalização, sobressaem-se, portanto, as reprimendas dos prazeres, sejam eles lúdicos ou sexuais – reprimendas que serão sublinhadas, a todo momento, pelos burilados diálogos do filme.
II - A força de uma prosa
A porta de entrada de Maria Luísa no cinema, como já sabemos, não foi a imagem, mas o texto. Como roteirista de filmes alheios, parece ter percebido, cedo, a importância de frisar posicionamentos com a linguagem que tinha em mãos. Mesmo nas obras dirigidas por Bemberg, os diálogos seguem como elemento político-narrativo central.
Primeiro, é por meio deles que a diretora consegue precisar contextos sociais e subjetivos. Em pensamento, Miss Mary exprime, em sua aparição inicial ainda na Inglaterra, inseguranças em relação à sua iminente viagem à Argentina, desvelando preconceitos colonialistas que irão ser desenvolvidos mais à frente. Ao chegar na mansão da família empregadora, a nova governanta troca impressões com Mecha, a mãe, sobre a guerra que se desenrola na Europa. Num eco tenebroso com o conservadorismo totalitarista do nosso presente, Mecha comenta que Hitler era apenas um maníaco que não deveria ser levado tão a sério. “Meu marido acredita que ele só irá atrás de judeus e comunistas”. Não restam dúvidas sobre suas filiações ideológicas, e nem sobre a fragilidade de sua aparente soberania. Ao passar por um aposento, explica – com a ironia característica de Bemberg – que aquele era o seu “quartinho de chorar”, reservado para os momentos de tristeza – que, diante do cinismo da vida burguesa, não serão poucos.
Seguindo nessa contextualização, nas negociações entre Miss Mary e o patriarca, Alfredo, a diretora delimita, verbalmente, as forças coercivas que recairão sobre Carolina e Terry. Para Alfredo, o ensino da religião é fundamental, pois “mantém as meninas fora de problemas”. Miss Mary confirma seus anseios, garantindo que todas as jovens por ela criadas “chegaram ao casamento em condições adequadas”. O pai também exige que suas filhas jamais saiam das vistas da governanta, que indaga: “pensei que este fosse um país seguro”, ao que Alfredo responde: “nenhuma mulher está segura quando há homens por perto”.
Também é pela palavra dita que Bemberg anuncia o primeiro indício de um impulso transgressor: Johnny, o filho mais velho de Alfredo e Mecha, pergunta à Miss Mary, com seu olhar persistentemente penetrante: “quantos anos você tem, Miss Mary?”, que lhe censura, com uma notável e ambígua ternura.
III - Filmar o desejo, subverter os fracassos
Como se pode ver, há vários desejos abafados em jogo – todos eles, com potencial para implodir as aparências castas da burguesia argentina. Seja com o tesão incontido de Alfredo pela esposa do cunhado, ou com a ida pedagógica de Johnny ao puteiro, Maria Luísa denuncia a dupla moral que recai, menos ostensivamente, sobre os homens. Mas a diretora também não se furta de esfarelar o simulacro da pureza feminina. A insistência verbal e visual de Johnny, numa manifestação genuína de seu afeto por Miss Mary, a leva a contrariar todo o pudor que tentara transmitir a Carolina e Terry. Numa noite chuvosa, que prenuncia a energia indômita do jovem rapaz, a governanta falha com sua maternagem e cede às investidas edipianas do garoto, jamais plenamente rechaçadas. E qual futuro se desenha, às mulheres do filme, depois de tal violação?
A descoberta desse quase incesto não modifica muito a jornada decadente de Mecha, que, como se vê no casamento de Terry, começa a utilizar óculos escuros para disfarçar o choro, que passa a transbordar os limites do seu quartinho secreto. “Elas são todas iguais, essas señoras com suas caras pintadas e tristes”, pensa Miss Mary ou vê-la no altar. A derrocada maior parece acontecer quando descobre a traição do marido: põe-se a atirar contra ele e a amante, quebrando janelas e ilusões matrimoniais.
Terry, a criança indócil, que, na juventude, ousa travessamente perder a virgindade antes do casamento, conforma-se ao papel que sempre lhe foi esperado. Antes da cerimônia, porém, anuncia o seu descontentamento. Carolina, a essa altura já tachada de louca, recusa-se a testemunhar a submissão compulsória e ritualizada de Terry. Passa a maior parte de seus dias datilografando, por recomendação do psiquiatra, a lista telefônica. Escreve o que pode, como pode. Um corte seco, que recupera, num lampejo mnemônico, o seu vigor dançante à lá Isadora Duncan, parece sepultar, de vez, a sua doce teimosia.
Fato é que, apesar dos infortúnios, nem Carolina, nem Terry, “chegam ao casamento em condições adequadas”, como havia prometido Miss Mary. Ao fracassar na contenção de seu desejo por Johnny, a governanta também fracassa na formação de jovens perfeitas. Se outras alternativas, mais auspiciosas, ainda não estavam postas às mulheres que falham em seu devir, o retorno de Miss Mary – e tudo o que ela representa – à Europa, findados os ciclos de autoritarismo tanto na Argentina, quanto na Inglaterra, prenuncia uma possibilidade de transformação prometida, talvez, a uma nova geração de meninas desobedientes. E quem sabe, as próprias Carolina e Terry descobririam, já velhas, que, assim como demonstrou Maria Luísa em sua bonita trajetória, nunca é tarde para recomeçar.

Este texto foi originalmente publicado no portal Sara y Rosa.
Referências
ARAÚJO, Gabriel. Cinema negro: radicalizar coletivos, pluralizar mutirões. Indeterminações¸ 31 jan, 2023. Disponível em: https://www.indeterminacoes.com/textos/tiradentes-3. Acesso em: 18 dez. 2023.
ARRESEYGOR, Celina. Bemberg: vida y obra de una cineasta con estilo propio. Buenos Aires: Editorial El Ateneo, 2023.
DE LAURETIS, Teresa. Technologies of gender: Essays on Theory, Film and Fiction. Bloomington/Indianapolis: Indiana University Press, 1987.
TREBISACCE, Catalina. Histórias feminista desde la lente de Maria Luísa Bemberg. Revista Nomadias, n.18, 2013.
VALDEMARCA, Laura Beatriz. Señoras de Crónica, de Nadie o de Exposición: Maria Luísa Bemberg, a cineasta que escolheu visibilizar os conflitos de gênero. Sul-Sul Revsita de Ciências Humanas e Sociais, v.1, n.3, 2021.
VEIGA, Ana Maria. Teoria e crítica feminista: do contracinema ao filme acontecimento. In: HOLANDA, Karla (org.). Mulheres de cinema. Rio de Janeiro: Numa, 2019.
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